quarta-feira, 27 de julho de 2016

J de (O) Jardim e a a Casa (XVIII)


SE EU FOSSE...


Se eu guardasse patos.
Mas não figura romântica, dama, estilizada.
Não como a que se debruça risonha, regaçada,
para o lago pequeno do Jardim da Estrela.

Se eu guardasse patos, de pé descalço ou de
tamancos...
De cana na mão, malhado do sol, esgrouviada,
sem graça nem disfarces!
Levaria o meu rebanho à minha frente, direitinho
à pancada.
Vá tu, mole. Vá tu, mal mandado. Vá, vá!

Real guardadora de patos da borda-de-água...
Se eu fosse!
Patos, meus cuidados, batidos e dóceis correríeis
como gamos.

Ou se eu fosse uma mulher de canastra.
Das que atravessam a correr as pranchas, carregadas e airosas.
Tantos passos para lá, tantos outros para cá...
Entre o barco e o cais o espaço é curto e debaixo há água.
E a prancha ginga.
Mas elas correm pesadas, seguras e rítmicas.

Ser uma mulher de canastra...
Se eu fosse!


João Falco (Irene Lisboa), Outono havias de vir,
Lisboa: Seara Nova, 1937



"Filha de rei guardando patos", Jardim da Estrela, 1917


*


FILHA DE REI GUARDANDO PATOS
[Jardim da Estrela, 1917]


Já não nos podem tirar nada:
o castelo estava em ruínas
quando o conquistámos
e da revolução sobrara apenas
a memória doméstica da água cortada,
toda aquela roupa por lavar.

Mas as estações deixavam-se guardar
nos herbários e o futuro rasgava-se
ainda nesse gesto largo, sem muros,
longe do exercício incerto de descer
a calçada mais íngreme.

Estas eram as nossas estrelas -
açaimadas, coxas, vadias.
E não desistimos de as trazer para casa.




Inês Dias, 
in Deitar a Língua de Fora, com ilustrações de Luís Henriques
Lisboa: Língua Morta, 2012

2 comentários:

Anónimo disse...

«[S]he loved beauty that looked kind of destroyed.» - like this wonderful poem.

Kssss

MF

Anónimo disse...

Gosto tanto.
Beijo
m