sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A de A propósito de melros *


Um melro desgrenhado
esgravata a terra do vaso

Escrevo
esgravato
com o bico da caneta
o caderno

Escrevo 
escaravelho


Adília Lopes
in Estar em casa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018


*


VI



E todavia,
as risadas do melro na gaiola
fazem-me rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto.

Porque eu sou como ele:
alguém me reduziu o tamanho do quintal
até o quintal ficar isto que se vê
- e eu a defendê-lo a golpes de riso. 

Como o melro, tal e qual. 


A. M. Pires Cabral
in Telhados de Vidro n.º 11, 
Lisboa, Averno, Novembro de 2008


*


A ÚLTIMA NOITE DA TERRA


O melro de todos os anos voltou a visitar a minha casa
mas eu permaneço aqui.
A sua música não muda, já o escrevi.
No entanto o meu trabalho é constatar o óbvio
e isso é o que o melro me vem recordar.
O tempo passa, as pessoas envelhecem, morrem
pela sua própria mão ou com ajuda.
As palavras vão descendo pelo escoadouro
do que alguém chamou a intra-história.
Tudo flui e perde-se, os rios no mar,
o mar na imensidão inabarcável do cosmos,
o cosmos no nada de onde não deveria ter saído.
Entretanto vamos dando às teclas.
Um tamborilar contra séculos de morte programada
e um futuro de certeira incerteza.
Um batalhão de patéticos amanuenses do esquecimento
exigindo duas camisas para o caminho até ao patíbulo.
O frio não é porém o problema, antes o medo.
E é o melro, na sua ignorância, quem conhece a verdade.
Cumpre sem a mínima estridência
o ritual que a biologia lhe impôs.
E de súbito morrerá. Sem epitáfios, como este,
que hão-de desfazer-se com uma careta indiferente
entre as chamas da última noite da Terra,
quando já ninguém reconhecerá qualquer significado,
se é que algo alguma vez teve significado.


Roger Wolfe
in Criatura n.º5, trad. Luís Filipe Parrado,
Faculdade de Direito de Lisboa, 2010


*


[...]
Por vezes fixo uma data, talvez até ao fim da minha vida. E quando chegar um dia antes desse dia, posso lembrar-me sempre de um facto que se lhe prende. Não importa que seja um aniversário. Pode não passar de um gesto, de um rosto que para sempre ficou perdido na distância não só do tempo como de uma rua, de uma sala de museu, de uma loja. Durou segundos, mas traz o traço, a sombra, a luminosidade capaz de se prender pelo que houver de longo na minha vida. Irrompe no exacto dia do aniversário da sua aparição, ou andará próximo desse instante. Nem sempre é um rosto, um corpo, ou um melro morto à beira de um passeio. Um objecto pode ser o senhor desse domínio festivo. Mesmo a morte de um melro ou de alguém amado transporta consigo um sentido de festa, de coisa que se comemora no mais secreto.
[...]


João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa, Relógio D'Água, 2012


*


TREZE MANEIRAS DE OLHAR PARA UM MELRO


I

Entre vinte montanhas cobertas de neve,
A única coisa que se movia
Era o olho de um melro.


II

Eu tinha três ideias em mente,
Tal como uma árvore
Em que estão três melros.


III

O melro rodopiava nos ventos de Outono.
Era uma ínfima parte da pantomina.


IV

Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro
São um.


V

Não sei se prefiro
A beleza das entoações
Ou a beleza dos subentendidos,
O melro a assobiar
Ou o instante depois.


VI

Os pingentes de gelo cobriam a longa janela
De vidro bárbaro.
A sombra do melro
Atravessava-a, de um lado para o outro.
O ambiente
Desenhava na sombra
Uma causa indecifrável.


VII

Ó homens magros de Haddam,
Porque é que imaginam pássaros de ouro?
Não vêem como o melro
Anda entre os pés
Das vossas mulheres?


VIII

Sei de tons nobres
E de ritmos lúcidos, irresistíveis;
Mas sei, também,
Que o melro faz parte
Daquilo que sei.


IX

Quando o melro desapareceu de vista
Marcou o limite
De um de muitos círculos.


X

Ao verem melros
A esvoaçar na luz verde,
Até as alcoviteiras da eufonia
Gritariam subitamente.


XI

Ele atravessava o Connecticut
Numa carruagem de vidro.
Um dia, o medo apoderou-se dele,
Ao confundir
A sombra dos seus cavalos
Com melros.


XII

O rio move-se.
O melro deve estar a voar.


XIII

Fez noite toda a tarde.
Estava a nevar.
E ia nevar.
O melro pousou
Nos ramos do cedro.


Wallace Stevens
[Trad. Inês Dias]


*


CANTO DA CHÁVENA DE CHÁ



Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.


Fiama Hasse Pais Brandão
in Cantos do Canto, Lisboa, Relógio D'Água, 1995


*


LEX VISIGOTHORUM



para o Manuel de Freitas


Mestre,


Este escrivão será breve nas palavras e demorado sob as estrelas, pois a vida extingue-se com um sôpro e o pavio da candeia arde e consome-se com a falta dele. A oliveira cresceu como um Poeta, benzida pelas estações, no render da Guarda Real: os Meses, o Sol e a Lua. As raízes são profundas e agarram-se à terra como os condenados. No nosso ofício, entre verbos e versos, transcrevi uma lei visigótica: coima de cinco soldos para quem arrancar oliveira alheia. Bárbaros somos nós, em Portucale: árvore alheia, coração próprio. Meu velho amigo, fora das muralhas está a belíssima civilização do Mundo: o gamo dorme à sombra da rama e o melro assobia com mel no bico. O gato faz o que quer e é feliz com tão pouco. Não há ponta de treva que cresça nesta saúde. Aqui, rente ao osso da matéria, a acidez é baixa e a lira canta alto. Termino, amadoramente, com um verso de outro tempo: é o músculo do peito que dá corda ao destino. Mestre, esta terra tem coroa: a família, frutos e um fio de ouro no lagar.


Ricardo Álvaro
in AAVV, De fio a pavio, Lisboa: Tea For One, 2012


*


Foi possível    sabes?
O dia foi breve menos do que os outros      possível
tão breve     a passagem dum melro     todo amarelo no canto
foi só escrever o poema
e logo a noite      tão breve


Abel Neves
in Eis o amor      a fome e a morte, Lisboa, Cotovia, 1998


*


Quando no quarto branco da Charité
Acordei de manhã
E ouvi cantar o melro, entendi
Muitas coisas. Muito havia
Que a morte não temia por saber
Que nada mais me faltaria se
Eu próprio me faltava. Nesse instante
Cheguei a alegrar-me até
Com o canto dos melros após a minha morte.


Bertolt Brecht
in Poemas, sel. e trad. de Arnaldo Saraiva, 
Lisboa: Presença, s/d




[* Uma micro-antologia, começada a 4 de Outubro de 2016, para o Ricardo Álvaro.]

1 comentário:

L. disse...

pus-me a traduzir roger wolfe. é um projecto a médio prazo, mas que sobretudo me dá muito prazer.